Teólogo da Liberdade
I - Vida
Uma das principais características de todos os reais líderes espirituais em toda a história da humanidade sempre foi o de ajudar e permitir que não houvessem barreiras entre a ânsia da alma humana em encontrar sentido para a vida no contato, ou amenos na busca pessoal, íntima, com Deus, ou o que quer que entendamos por Divindade. Sabemos, hoje, através da Antropologia, da Psicologia e da Filosofia, que a intuição do homem com um nível transcendente de realidade é um "instinto" universal, encontrado em todos os povos, mudando apenas as características culturais de como esta intuição se expressa (Campbell, 1990; Eliade, 1996, Jung, 1991). Mas, tão antiga quanto a própria busca, igualmente é o processo de diferenciação e de construção de uma elite de "especialistas" que se arvoram o direito de serem "intermediários" entre o homem e Deus, entre o leigo e a Divindade. Estes especialistas sempre formaram classes privilegiadas que, de acordo com seus interesses, "interpretam" a mensagem deixada pelos reais líderes espirituais de forma concorde a que uma determinada visão de mundo seja propaganda entre os fieis, cristalizando suas posições políticas, nem sempre de acordo com as reais necessidades das pessoas a quem lhes dirigem este paradigma.
No ocidente, a mensagem de Amor Universal e Incondicional do Cristo foi, como a dos demais grandes líderes espirituais, objeto de uma paulatina mas incessante apropriação política por parte da elite religiosa do Império Romano Romano - e não é à toa que temos "sacerdotes" na Igreja de Roma, vestidos como os antigos sacerdotes da rica (não vamos taxar de errônea nem de primitiva as formas de religiosidade antigas) tradição "pagã" do Império, com ritos também muitas vezes aproximados aos de antes da cristianização. A Instituição do cristianismo como Religão Oficial, a partir de Constantino, apenas precipitou ainda mais este processo, e Roma se impôs como a cabeça do movimento cristão, passando por cima das outras Igrejas, em especial a de Alexandria, de Antioquia e de Jerusalém, que tinham suas próprias maneiras de entenderem a mensagem do Cristo.
Por várias vezes, reações populares e individuais se fizeram ouvir contra o processo de "complicação" que a mensagem do Cristo estava tendo por intermédio do Clero, sempre disposto a envolver Jesus numa áura mágica e distante da realidade humana, num processo que cristalizava ainda mais a autoridade dos "especialistas" da Igreja de Roma. A reação contra estas vozes, todos sabemos, foi férrea e violenta. Desde cedo, o poder de Roma (e de Constantinopla, mas este mais ligado á Igreja Bizantina Ortodoxa, do qual não iremos tratar aqui) protegeu os interesses da elite religiosa, pondo na categoria de hereges perigosos todos os dissidentes da Doutrinha Oficial do Estado. Na Idade Média, com um sistema inteligente de polícia, a Igreja conseguiu calar várias vozes, como a de John Huss, um dos precursores maiores da Reforma, e de moviementos como o Catarismo. Só no século XVI, porém, a corrupção da Igreja e o escandá-lo entre política clerical e Mensagem Evangélica é que teria, por fim, atingido um impasse e um tensão de monta (acumulada há séculos) que iria explodir na Reforma Protestante liderada por um gênio, Martinho Lutero.
Martinho Lutero (Marthin Luther) nasceu na Alemanha, àquela época uma nação dividada em inúmeros principados e ducados, a 10 de novembro de 1483, na cidade de Eisleben, Turíngia, centro da Alemanha. Seus pais chamavam-se João (Johann) e Margarida (Gretchen) e eram relativmente pobres - João era mineiro e lenhador -, mas possuiam a riqueza da instrução e sensibilidade religiosa. Johann sabia ler e escrever e desde cedo se ocupou em dar uma boa educação do filho Marthin. Em 1484, a família muda-se para a cidade de Mansfeld, onde Martinho iniciou seus estudos, demonstrando, aos poucos, possuir uma inteligência fina e arguta. Dando continuidade a seus estudos, Martinho deixou a casa paterna e ingressou na escola superior de Magdeburgo, antes dos 15 anos. Depois de um ano ali, teve que retornar à casa dos pais acometido que foi de grave enfermidade, indo por esta razão, no ano seguinte, estudar em Eisenach. Três anos cursou o colégio de Eisenach. Em 1501 ingressava na Universidade de Erfurt, cidade conhecida como "Roma Alemã" pelo número de suas igrejas e mosteiros. Obteve ali os graus de Bacharel (1502) e Mestre em Arte (1505). No mesmo ano ingressou no curso de Direito.
Tudo indicava que Lutero faria carreira na vida pública ou acadêmica e, apesar de seu zelo e respeito para com a Religião (ele era um Católico Convicto, até por que não havia mesmo outras vertentes cristãs à época), nada diria que iria, de fato, um dia se dedicar seriamente a assuntos religiosos. Mas um incidente o faria mudar de idéia. Em 02 de julho de 1505, regressando da casa paterna para a Faculdade, teve sua vida seriamente ameaçada por uma tempestade que, por pouco, quase lhe tirara a vida. A emergência da situação o levou a fazer, nesta oportunidade, um voto a Sant’ana que, se lhe fosse dado viver, ingressaria no mosteiro para tornar-se monge. No dia 17 de julho de 1505 cumpriu a promessa adentrando pelas portas do convento da Ordem dos Agostinhos.
Disciplinado e dado aos estudos, Lutero foi ordenado sacerdote em 1507. Porém, quanto mais se dedicada à tarefa intelectual sobre os livros de Teologia, maior crescia sua angústia. Para ele, as palavras dos doutores eram complicadas demais, rebuscadas demais e, diante da poesia dos Evangelhos, na verdade pareciam mais levar a um escurecimento da mente do que a iluminá-la diante de tantos ornamentos e armadilhas argumentativas da Escolástica Medieval. Por esta época o Renascimento já trazia um ar novo e um espírito de Liberdade na egreógra intelectual Italiana e alguns dos pensamentos humanistas já atingiam a Alemanha. Lutero entrava em conflito diante da necessidade do crescimento humano e as regras duras de Salvação que eram estabelecidas pela Igreja Tradicional (este conflito, porém, nunca esteve realmente resolvido em Lutero. Em alguns pontos de sua Doutrina, infelizmente, ele ainda adotaria uma postura rígida, estabelecendo que o Destino da Alma dependia unicamente da Fé, muito mais que das obras feitas pelos homens...).
Segundo a biografia de Lutero publicada em "O Mensageiro Luterano", por indicação do vigário da ordem de Santo Agostinho, João de Staupitz, Lutero foi designado professor na Universidade de Wittenberg, fundada em 1502 por Frederico, o Sábio, duque da Saxônia e presidente dos sete eleitores civis que, juntamente com sete autoridades religiosas, elegiam o imperador do Sacro Império-Romano da Nação Alemã. Nesta Universudade, Martinho ocupou brilhantemente a cátedra de Teologia. Aprofundou-se em seus também seus estudos das línguas, instruindo-se principalmente no gregos e hebráico, repetindo quase que a mesma carreira de São Gerônimo e, em 09 de março de 1509, obteve o grau de Baccalaureus Biblicus.
Um dos mais brilhantes teólogos da Alemanha, país este mais disciplinado na formação do caráter religioso que os demais, em 1511, Lutero foi escolhido, aos 28 anos, para ser enviado em missão diplomática a Roma. Ao entrar en contato, porém, com a Sede da Igreja, sua decepção foi terrível. Se querem ter uma idéia do que era a sociedade romana da época, leiam o "Decameron", de Boccacio. A corrupção, imoralidade, as zombarias, o desrespeito do clero e da cúpula da igreja para com as coisas sagradas marcaram nele uma profunda desilusão. Em tudo e por tudo, os interesses da clero eram mais mundandos que espirituais. Grandes somas de dinheiro eram obtidas de toda a Europa para financiar as vaidosas construções papais, e muito esforço era dispendido para ter o total controle do pensamento intelectual, já que pensamento do Renascimento parecia questionar pontos básicos da doutrina da Igreja e deslocava aos poucos a ênfase do pensamento da Teologia endurecida de Roma para um foco mais humanista. Embora profundamente entristecido, diante das picuinhas da igreja de Roma, Lutero não deixou de crer em seus princípios.
Em outubro de 1512, Lutero recebia o grau de Doutor em Teologia. Assumiu, a seguir, a cadeira de Lectura in Bíblia lecionando o hebraico do Antigo Testamento e o grego do Novo Testamento, incorporando conquistas do humanismo na ciência da interpretação de textos. Ainda em 1512, foi eleito subprior do convento de Wittenberg. Em maio de 1515, o cabido geral reunido em Gotha o designava vigário do distrito, que compreendia onze conventos sob sua orientação e autoridade. As suas preleções eram tão concorridas que a elas acorriam estudantes de todas as partes e países vizinhos. Os professores assistentes também aumentavam. Ocupando o púlpito, a capela logo não mais podia comportar os assistentes. O senado o convidou então a ocupar a igreja paroquial da cidade. Nestes debates, Lutero começou a discutir o papel da Igreja na chamada "Venda de Indulgência" (que, por estranho que seja, se foi o início do movimento das Reformas na Igreja, hoje é uma das características da Igrejas Evangélicas no Brasil, em especial as de linha calvinistas vinda dos Estados Unidos e da IURD, Igreja Universal do Reinod de Deus. Mas estas vertentes evangélicas têm muito pouco a ver com a Igreja Reformada de Lutero).
Lutero se irritava com o aspecto comercial e, em seu ponto vista ilógico, absurdo, da Igreja no sentido de se vender a paz de espírito e um lugar no Céu através das "Cartas de Indugência", vendas essas que financiavam a construção da Igreja de São Pedro, em Roma, e enriqueciam o clero.
Em 1517, Lutero não aguentava mais este comércio e quis provocar um debate público sobre a venda de indulgências promovidas pelo Papa Leão X e o arcebispo Alberto de Mogúncia através da Ordem dos Dominicanos. Quando pregou à porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517, o pergaminho com as 95 teses em latim para serem debatidas entre os acadêmicos, conforme o costume da época, Lutero estava ainda longe de acreditar que seu ato iria desencadear um movimento revolucionário na história da igreja. El era apenas o pároco que, preocupado, via como as almas dos fiéis eram desnorteadas por um grande escândalo, descaradamente apregoado em nome da santa Igreja: a venda do perdão de Deus, como se fosse mercadoria, por meio de cartas de indulgência. Estas são algumas das teses apresentadas por Lutero: - Dizendo nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo: Arrependei-vos... etc., pretendia falar da vida interior do cristão que deveria ser um contínuo e ininterrupto arrependimento (Tese I) - Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório (Tese 27) - Todo o cristão que se arrepende verdadeiramente dos seus pecados e sente pesar por ter pecado, tem pleno perdão da pena e da dívida, perdão esse que lhe pertence mesmo sem compra de indulgência (Tese 36) - Esperar ser salvo mediante breves de indulgência é vaidade e mentira, mesmo se o comissário de indulgências e o próprio papa oferecessem sua alma como
garantia (Tese 52).
A Reação de Roma, como era de se esperar, foi violenta. Lutero foi chamado para responder processo em Roma, dentro de sessenta dias. Mas, por interferência de Frederico, o Sábio, Príncipe da Saxônia, o Papa consentiu que a questão fosse tratada em Augsburgo, pelo Cardeal Cajetano. Este exigia simplesmente que Lutero se retratasse, o que este, naturalmente, não fez. Tinha Lutero nessa época o apoio do capítulo da Ordem dos Agostinhos e do corpo docente da Universidade de Wittenberg. A Alemanha, enfim, tinha toda uma percepção ética que apoiava a maior parte das teses de Lutero afixadas em Wittenberg.
O Papa temia, com razão, que este moviemento viesse a construir uma oposição cerrada contra Roma entre os príncipes alemães. Era necessário usar alguma tática que lhe permitiesse resolver a questão sem ferir a vaidade dos políticos envolvidos. Assim, espertamente, condecorou o protetor de Lutero, Frederico, o Sábio, com a "Ordem da Rosa Áurea da Virtude" e enviou o conselheiro Karl von Miltitz que conseguiu que Lutero escrevesse uma carta ao papa, declarando sua fiel submissão; mas reafirmou, também, sua doutrina da justificação pela fé somente, sem os méritos de obras (um dos pontos de sua doutrina que eu mesmo acho exagerado). Expôs e defendeu sua posição num debate com o Dr. João Eck em Leipzig. O que precipitou o rumo das coisas foi sua declaração de que nem todas as doutrinas de João Huss (queimado como herege em Constança, em 1415) eram falsas, e que os concílios são passíveis de erros em suas decisões. Isto o colocou à margem da igreja papal, que se fundamentava sobre a infalibilidade do papa e dos concílios.
A resposta do Papa foi a bula de excomunhão Exsurge Domine. Ela ainda dava 60 dias para Lutero retratar-se do que havia escrito e ensinado. Lutero, apesar da angústia, manteve-se firme e, em 03 de janeiro de 1521, esgotou-se o prazo dado na bula, sendo então proferido o anátema definitivo, pela bula Decet Romanum Pontificem.
Em 1521 houve a primeira Assembléia do Sacro Império, presidida pelo jovem imperador Carlos V, eleito em 1520, em sucessão a Maximiliano, para dirigir o reino "em que o sol não se punha". Lutero, intimado, compareceu diante da assembléia em de abril de 1521. Perguntado se renunciava ao que tinha escrito, respondeu: "Não posso, nem quero retratar-me, a menos que seja convencido do erro por meio da palavra bíblica ou por outros argumentos claros. Aqui estou; não posso de outra maneira! Que Deus me ajude. Amém".
II - Obra
Proscrito pelo imperador, Lutero corria sério risco de vida, mas foi posto em segurança pelo duque Frederico, através de um seqüestro simulado durante sua viagem de retomo, e escondido no Castelo de Wartburgo, nas proximidades de Eisenach. Sua principal realização nesse período foi a tradução do Novo Testamento grego para um alemão fluente de grande aceitação popular. Segundo cosnta, os primeiros 5 mil exemplares esgotaram-se em 3 meses. Em cerca de dez anos houve 58 edições. Em 1522, ainda com risco de vida, reassumiu as funções de professor em Wittenberg. Juntamente com Felipe Melanchthon cognominado Praeceptor Germaniae - educador da Alemanha), seu grande amigo e colaborador, instruiu centenas de estudantes alemães, boêmios, poloneses, finlandeses, escandinavos. Por esta época também estabeleceu o catecismo básico luterano e os rituais da Igreja, muitos foram adaptações do ritual romano. Em vários pontos, Lutero apenas fez o que se propôs, reformou a Igreja de modo a que se fizesse mais transparente à mensagem do Cristo, mantendo os ritos e símbolos que ajudavam a meditação dos fieis e estimulavam uma interiorização da alma. Assim, a comunhão era feita realmente com pão comum e vinho. Os vitrais permaneceram e, com excessão do crucifixo, a adoção de outras imagens era facultativa. A arte era exaltada, em especial a música (lutero mesmo era bom compositor e deixou vários belíssimos hinos) e era dado muita ênfase à educação intelectual dos fieis, em especial por meio da Teologia, Filosofia e Ciências.
Apesar de haver pessoas com a função de conduzir os cultos e reuniões da assembléia, Lutero afirmava que todos tinham igual capacidade do entendimento íntimo de Deus e seus desígnios e cada um é responsável por seus atos, conforme a sua consciência. Sua posição firme e coerente lhe granjeou grande estima e em 1555, 9 anos após sua morte, a Paz de Augsburgo atendeu, de certa forma, aos reclamos dos evangélicos. Os príncipes e cidadãos do império respeitariam a filiaçao religiosa de cada um, e o povo teria a opção de adotar a confissão religiosa do respectivo domínio ou de emigrar a território que tivesse a confissão desejada.
Martinho Lutero faleceu aos 62 anos de idade, em 18 de fevereiro de 1546, em sua cidade natal, Eisleben, depois de solucionar um litígio entre os condes de Mansfeld. Com grande cortejo fúnebre e ao som de todos os sinos, Lutero foi sepultado sob as lajes da igreja do Castelo de Wittenberg, onde sempre pregava o evangelho e deu início ao processo de liberdade religiosa que iria abraçar todo o mundo.
Bibliografia
Enciclopédia Delta-Larousse, 1971, Rio de Janeiro