Napoleão Bonaparte




Quando o príncipe Clemens von Metternich, recém nomeado embaixador austríaco na França, em 1806, foi para Saint-Cloud apresentar suas credenciais a Napoleão, não teve boa impressão do imperador. Ele - descendente orgulhoso e refinado de uma família da antiquíssima nobreza renana, tão cioso da etiqueta da corte e tão imbuído das formalidades protocolares da diplomacia - encontrou na sua frente, em pé, no meio do salão, rodeado pelo ministro das relações exteriores e outras seis pessoas, um Napoleão de aspecto desleixado, vestindo o uniforme dos guardas de infantaria e usando chapéu na cabeça. Este último detalhe, ainda mais censurável pelo fato de não se tratar de uma audiência pública, deixou-o atônito.Sendo esse seu primeiro encontro com o imperador dos franceses, tinha se apresentado à audiência cheio de curiosidade, e também de admiração pela grandeza do homem que fazia o mundo tremer. Entretanto, o estadista austríaco reconheceu nas suas memórias que Napoleão gozava na França do tipo de popularidade que um soberano conquista quando demonstra saber "segurar as rédeas do poder com mão hábil e firme" e era dotado de um "espírito realista" que lhe permitia identificar as "necessidades de um país cujo edifício social precisava ser construído".(1)
         
Quando Metternich teve oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, Napoleão tinha atingido o apogeu da prodigiosa parábola de sua existência. aqueles traços de caráter e de comportamento que tinham chocado o moderado e aristocrático estadista austríaco, tinham se afinado e apurado com o tempo.
         
Já na juventude, Napoleão revelara uma engenhosidade extremamente fina e uma índole agressiva, mas também um temperamento orgulhoso, que não suportava os fracassos nem as humilhações, que disfarçavam um complexo de inferioridade devido à baixa estatura e às brincadeiras dos companheiros sobre seu sotaque de corso. Pouco sociável por natureza, não tinha muitos amigos com os quais partilhar divertimentos e leituras, entre estes porém, devemos citar Carlo Andréa Pozzo di Borgo, que se tornaria mais tarde, como conselheiro do czar Alexandre I, um dos seus mais ferinos e implacáveis adversários.(2)
         
Sua formação intelectual não foi, na verdade, particularmente profunda nem acurada, sendo fruto da abordagem desordenada e episódica de textos significativos da cultura iluminista e pré-romântica. Demonstrou interesse pelas obras de Voltaire, folheou as obras de Montesquieu e Diderot, deliciou-se com as Liaisons Dangereuse de Laclos, apreciou Rousseau; interessou-se pela história, a geografia, as doutrinas políticas e econômicas, mas não pelas ciências.
         
Mais ainda que a carreira militar, sua verdadeira vocação foi a guerra. Um estudioso francês, Jacques Godechot, notou com muita propriedade que, entre 1792 e 1815, com exceção de um período de 14 meses de 1802 e 1803 e outros onze meses de exílio em Santa Helena - Napoleão sempre esteve empenhado em empreendimentos bélicos.(3)
         
Após sua nomeação a comandante em chefe do exército empenhado na campanha da Itália em 1796, seu gênio militar mudou radicalmente, tanto do ponto de vista tático quanto estratégico e apareceu em toda a sua grandeza. A estratégia de Napoleão, analisada minuciosamente mais tarde pelo general prussiano von Clausewitz que o escolheu como base para escrever seu famoso tratado sobre a arte da guerra (4), era particularmente adaptada aos "campos fechados" da europa central e meridional e se baseava na surpresa determinada pela concentração de forças nos pontos mais fracos da formação inimiga, na rapidez, no uso da artilharia, na ação das massas. Por outro lado, aquela estratégia que na realidade não era extremamente original e retomava idéias já adotadas pelo novo regulamento de manobra do exército francês de 1788, tornou-se vitoriosa pela prodigiosa engenhosidade operacional de Napoleão, pelo fascínio magnético que emanava da sua pessoa, pela habilidade excepcional em infundir nos soldados e nos subalternos sua carga de entusiasmo e de impetuosa vontade de vitória.
         
Os dons que deram corpo e substância à genialidade militar de Napoleão e que contribuíram para transformá-lo num mito fascinante e cativante - em primeiro lugar, a excepcional e ilimitada capacidade de trabalho, a proverbial habilidade em tomar decisões fulminantes na determinação dos seus sucessos, inclusive no terreno político, e na atividade de legislador. De inteligência rápida e sobretudo pragmática, ambicioso e convencido da própria superioridade, amante do poder, Napoleão teve um dom instintivo e natural: o de saber captar os humores da população francesa e responder às suas espectativas. Não elaborou um pensamento político orgânico, não seguiu os ditames de uma teoria política harmoniosa e sistemática, mas soube levar adiante um projeto de estruturação institucional do Estado que recebia sincreticamente muitas motivações e solicitações doutrinárias. Tinha poucas idéias mas eram claras e precisas: constitucionalmente céptico, não nutria nenhuma fé na bondade inata do homem, detestava as revoluções enquanto perturbadoras da ordem e portadoras de lutas e de sangue, desconfiava das assembléias parlamentares que se perdiam em vãs discussões, não acreditava na soberania popular a não ser como elemento de legitimação do poder de fato pelo instrumento do plebiscito.
         

Seu império foi, em substância, uma ditadura militar inédita e iluminada, que ele se esforçou em fazer aceitar pela Europa monárquica e tradicionalista, ora unindo-se em casamento com a filha do imperador austríaco, ora criando uma nova aristocracia que, ao fundir-se com a antiga, deveria ter garantido duração e continuidade ao edifício institucional que ele tinha erguido. Estava convencido que, para desenvolver a obra de reorganização interna, era necessário "amalgamar" as melhores energias do país, independentemente de suas divergências políticas e ideológicas. Foi nesse princípio que se inspirou quando da escolha dos seus colaboradores na base não do passado político mas sim da competência ou da fidelidade pessoal: não foi por acaso que, entre seus ministros, aquele que teve maior autonomia foi o marquês Charles Maurice di Talleyrand-Perigord nas relações exteriores.
         
Sob diversos ângulos, Napoleão embora restabelecendo algumas instituições próprias do antigo regime, foi um dos criadores do Estado moderno. Não somente porque garantiu a permanência na França e a divulgação por toda a europa da época de algumas conquistas da Revolução como, por exemplo a abolição do regime feudal e a proclamação da igualdade de todos perante a lei, mas também e sobretudo por algumas iniciativas legislativas. Entre essas, temos que lembrar em primeiro lugar a promulgação do Código Civil (1804), de Procedimento Civil (1806), do Comércio (1807), de Procedimento Penal(1807) e Penal (1811). O conjunto desses códigos para a realização do qual  foi instaurada uma comissão especial controlada pessoalmente pelo chefe de estado, selou definitivamente o fim do princípio da multiplicidade das fontes de direito que caracterizara toda a história do antigo regime. Particularmente o Código Civil ou Código Napoleônico, imposto em todos os territórios anexados ou vassalos da França, criou um sistema valioso de garantia da propriedade, das liberdades individuais, da igualdade jurídica e tornou-se portanto, muito além das fronteiras francesas, um possante instrumento propulsor da unificação nacional.
         
Durante os seis longos anos passados no exílio no rochedo perdido de Santa Helena, rodeado por uma pequena corte  - da qual faziam parte os generais Bertrand, Gourgaud e de Montholon, o dignitário Las Cases, o camarista Marchand e revezando-se, os médicos Wardem, O`Meara e Antonmarchi -  Napoleão esforçou-se nas conversas cotidianas, em desacreditar, ponto por ponto a "lenda negra" construída pelos seus adversários em torno de sua política e personalidade e substituí-la por uma "lenda positiva" na qual ele aparecia como propagador dos princípios da Revolução, instigador das energias nacionais, precursor dos novos tempos. As duas "lendas", condicionaram as abordagens historiográficas e interpretativas da figura de Napoleão e, como observou Jean Tulard, "O Memorial de Saint-Hélène", publicado em 1823 por um dos "evangelistas de Santa Helena", Las Cases, reabilita a lenda napoleônica de modo apologético.(5) Com objetivo histórico propriamente dito, temos a monumental Histoire du Consulat et de l`Empire, publicada em 20 volumes entre 1845 e 1862, devida à pena de Adolphe Thiers, que se atém predominantemente à história militar, diplomática e financeira e que, elaborada na base de uma rica documentação, é francamente favorável ao imperador; com avaliação negativa registra-se a inacabada Histoire du XIX Siècle de Jules Michelet, editada postumamente em 1875.
         
No século vinte, os estudos sobre o período napoleônico, graças inclusive a novas abordagens metodológicas e hermenêuticas, trouxeram tributos notáveis, deixando de lado as perspectivas apologéticas ou desabonadoras: trabalhos como o de Friedrich Masson, de Georges Lefebvre, de Jacques Godechot, de Jean Tulard, para citar alguns dos nomes mais significativos da historiografia napoleônica, permitiram não só uma avaliação equilibrada desse grande protagonoista da história moderna, mas também um esclarecimento sobre as mais importantes questões historiográficas colocadas pela aventura napoleônica na história francesa e européia.